OBSERVAR E SENTIR O QUE POR VEZES DÓI



Estava um calor quase insuportável. Entrei no autocarro disposta a sair em Ermesinde, para ir ao Banco. Iria, depois disso,  dar uma volta, inicialmente sem destino determinado e à procura não sei bem de quê. Só sabia é que tinha umas 3 horas à minha disposição. Minha Mãe tinha ficado bem entregue aos cuidados da colaboradora que dá uma ajudinha nas lides caseiras de minha irmã.  Não porque minha Mãe precisasse de qualquer ajuda. Tratava-se, apenas, de garantir que, na sua fraqueza, depois duma gripe,  nada pudesse pôr em causa a sua segurança. Os seus quase 95 anos já denunciam uma certa instabilidade na sua mobilidade, sobretudo depois de ter tido febre e, consequentemente, ter ficado debilitada.

Porque a estação de correios de Ermesinde mudou de local, optei por entrar num autocarro afim de ir à Estação Central dos Correios, no Porto. Tinha uma encomenda que deveria enviar para o Reino Unido, urgentemente e, aí, eu sabia que não haveria atrazos.

Sentada no autocarro, num banco com sombra, eu observava, um a um, quem entrava. Os que estavam sentados  tinham já o ar calmo da aparente indiferença de quem não está interessado nos outros e isso não era o que despertava a minha atenção. Preferia observar quem entrava.  Tentar adivinhar a alma de cada um. Tentar sentir de que tipo de pessoa se tratava.

À minha frente sentou-se um casal com o ar de camponeses. Ela estava com um lenço amarrado na cabeça. Tinha umas sobrancelhas grossas e cara de poucos amigos. Senti que a senhora não estava tranquila. O marido, com um boné enfiado na cabeça, tinha uns lábios muito finos e estava de sobrolho carregado.

- Num bamos tchegar a tempo, home de Deus! Tu num bês cainda temos capanhar a carreira?, diz a mulher ao marido.
- Ó mulher, tem calma, porra! Bais ber quinda bamos ter de esperar!
-  Tens sempre a mania cutempo espera por ti, carago. Eu atcho kémelhor sairmos outra bês, Jaquim. Apanhamos outro carro e bamos p’rá estação. Bais ber que num bamos a tempo    dapanhar a carreira. Talefonamos ao Tchico e ele bai buscarnes à estaçon.

O homem não respondeu e a mulher achou melhor calar-se. Não valia a pena. O seu Jaquim era teimoso. Embora com ar de quem hesita, ela aceitou continuar no autocarro. Ele, com cara de quem não está nada ralado com o que a sua mulher diz, leva a bom termo a sua decisão de permanecer no autocarro. 

Entretanto, o condutor do autocarro, entre o avança, trava, pára, arranca,  vai atirando as pessoas que estão de pé umas contra as outras. Umas bociferam, outras riem, outras ainda, comentam entre si a rudeza da condução. Uma senhora muito bem, embora balançando em contínuo, olha para todos com o ar de quem não devia estar ali dentro, metida numa caixa com seres humanos que não pertenciam ao círculo de ‘gente bem’ com quem lidava normalmente. Parecia, realmente, uma senhora “muito bem”.  Estava ali apenas porque … Estava!

O autocarro continuava andando, cumprindo a sua missão de transportar gente. De repente, pára. Pela frente, uma bicha interminável de carros impede o motorista de prosseguir. As pessoas, perante este cenário, após alguns minutos começam a mostrar sinais de impaciência. É aqui que começa a sentir-se as diferentes reacções. 

- Isto é uma pouca vergonha! Um país de merda!, dizia um homem de barriga proeminente, face vermelhuça e cheirando a álcool que tresandava.
Uma mulher, com ar de quem não quer a coisa, responde-lhe:
- Ó Senhor, espere com calma, carago, que o condutor daqui a bocado já passa por cima dos carros todos e sem nos apercebermos, estamos na Cordoaria.
A mulher olha para os outros auscultando reacções, mas ninguém reagiu.

- Ó Jaquim, eu num te disse para sairmos, home? Estás a ber no que nos metemos? Agora …, auguenta! Bais a lebar uma rabecada do teu filho, que nem bais ter tempo de lhe respunder. Nunca mais bai lá a casa ajudar-te e bais apanhar as txibolas sózinho. Olha, meu menino, eu é que num tajudo. Num tinha mais que pôr ao lume!
- Tu tens é cunbersa, carago. Olha, cala mas é a caixa que já me estás a meter nerbos, gralha do caraças. Nós bamos sair na Areosa e apanhamos o outro autocarro.

O autocarro continuava parado e as pessoas começaram a agitar-se, impacientes. Diz uma voz esganiçada lá do fundo:
- Ó senhores, tende calma, cum catano! Ainda bus dá uma coisinha ruim … Deixem o condutor arresolber isto, santas criaturas. Vocês o qué que querem quele arrisolba? Antão vocemessês num beem ku home num pode fazer nada, carago?

Os mais  menos daquilo tudo, olhavam uns para os outros. Uns  sorriam, outros continuavam calados, como eu.

A fila de carros começa a deslizar, lentamente, acalmando um pouco os ânimos daquela gente.
Neste pouco tempo de discussão entre alguns e risos entre outros que assistiam à cena compreendendo que nada podia ser feito, estava  eu e comecei a sentir uma enorme pena daquela gente. Este é o meu País, pensava eu. Um grupo de pessoas que, no fundo, foram vítimas do infortúnio da carência de tantas coisas elementares, tais como a educação. A minha cabeça começa a imaginar um quadro triste, muito triste. Criticá-los não ajudaria, nem foi isso que me passou pela cabeça . Teem de ser julgados no contexto geral dum país com um passado complexo, que os reduziu a isto. Alguns deles se via que tiveram uns pais que souberam e puderam orientá-los e  educá-los de forma correta, outros ainda, porque criaram um sentido de defesa contra os infortúnios que sabiam poderiam bater-lhes à porta, revelam-se pessoas que conhecem onde começa e onde acaba a educação de cada um. Outros, tal como parte destas pessoas reunidas num autocarro de pequenas dimensões, revelam-se, na sua maioria, pessoas que não sabem travar os seus impulsos.

- Ó senhora, você não disse que queria sair aqui? – diz a esganiçada que lhes tinha aconselhado calma. Saiam, alminhas de Deus, senão perdem mesmo a carreira.
- Ó senhor  cundotor, espere aí  ca gente temes de sair aqui, porra.

Na sua calma, talvez por já estar muito habituado a estes cenários, o condutor respondeu:

- Saiam lá. Saiam lá. Vocês não veem que há campaínhas para dar o sinal de paragem ao condutor?
- Obrigadinha, senhor. Bá cum Deus.

E lá foram eles à sua vida. Nunca chegarei a saber se eles apanharam a tal “carreira”, mas uma coisa sei: o autocarro ficou mais vazio.

Uma miúda, semi vestida, de riso estérico  e dando pulinhos cada vez que lançava uma gargalhada para o ar,  tinha despertado a minha atenção. Há muito que vinha a apreciá-la, mas o tipo de comportamento dela causava em mim mais repugnância do que o tipo de comentários dos outros passageiros. Ela estava acompanhada de dois rapazes ambos vestidos com jeans muito baixo das ancas. De tal maneira abaixo, que corriam o risco de ficar em cuecas em qualquer momento. Os seus ténis eram enormes e estavam bastante sujos. Um deles devia ter-lhe batido uma rabanada de vento no lado direito da cabeça, porque tinha o cabelo colado à face formando uma enorme vírgula. Mas não, não foi isso que aconteceu por certo porque, de quando em quando, ele dava um abanão na cabeça como quem quer repor a vírgula no seu sítio ou passava-lhe a mão por cima, não fosse ela desaparecer e tirar-lhe o penteado muito, mas mesmo muito, ‘estiloso’. Embora eles estivessem os dois sempre a rir com a jovem, com o ar de estarem os dois em competição, tentando cada um seduzi-la para verem (talvez) para que lado penderia, eram mais parcimoniosos do que a rapariga de ar convencido, saltando e gargalhando como uma louca. Eu procurava compreender o porquê daquelas gargalhadas que tanto me incomodavam, mas ainda não tinha conseguido.

Perto deles, estava um jovem de ar afeminado, que não tirava os olhos da jovem. De pé, em frente da rapariga, ele olhava-a fixamente. Era nela que a sua atenção se concentrava e isso não passava despercebido a ninguém. Ele parecia não ver mais ninguém, naquele autocarro. Estavam os quatro junto à porta de saída. O autocarro continuava cheio. Eu não tirava os olhos deles, tentando compreender aqueles comportamentos. O autocarro parou num determinado ponto, perto da Praça Marquês de Pombal e o rapaz, de ar afeminado, saíu. Foi então que aquela jovem e os rapazes soltavam gargalhadas mais fortes ainda e com os corpos meio saídos da porta do autocarro enquanto se seguravam nos varões, deixando o rapaz envergonhado, vermelho como um tomate. O autocarro retomou a marcha e ainda ouvi a rapariga dizer:

- Cara___! Este aqui na cama comigo seria uma noite perdida. Não percebo porque olhava tanto para mim, maricas de merda!

Deduzi, então, que o rapaz de ar afeminado olhava para a rapariga fixamente porque, muito provavelmente, ela deve ter o hábito de tomar este tipo de atitudes quando ele está por perto, mas nem isso a intimidava a moderar as suas provocações. Apeteceu-me dizer-lhe:

- Ouve lá, ó minha parva! Tens a cabeça ôca. A figura que tens estado a fazer é mais triste do que qualquer outra a que assisti neste autocarro. Mas contive-me. Eles eram suficientemente  ridículos para desmotivar-me de “pregar aos peixinhos”. Fiquei com muita pena do rapaz que saíu. Consegui perceber que estudavam na mesma escola.

Num curto espaço de tempo , eu que defendo que a educação das crianças e dos jovens passa, em primeiríssimo lugar, pelo ambiente familiar, tive aqui ocasião de observar que o mal está, realmente, dos dois lados: Jovens e adultos.

Não queiramos exigir dos jovens aquilo que os mais velhos não revelam à sociedade: respeito e educação.

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